quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Heróis do Jenipapo



       Podem até negar a nós o que é nosso, o nosso 
salário, mas não podem retirar de nós o que 
nós somos, professores.

                                                                                                                    
A frase acima refere-se à greve dos professores, os quais foram os primeiros, este ano, a ensinar que os servidores devem fazer greve, protestar contra a hipocrisia do uso da educação. Estão faltando notícias, mormente as específicas dos supostos graves problemas do IFPI, acerca das quais eu darei notícias brevemente. A nós, portanto, só restaria requentar as já existentes, escrever "abobrinhas", algo técnico-científico ou filosofar um pouco. Prefiro filosofar, pois, afinal, hoje é o dia de nossa festa maior, a de nossa independência do Reino de Portugal. 


Tendo este blog o mesmo nome de nosso estado, e sendo o nosso Piauí o único no qual realmente houve guerra pela independência, quero compartilhar com os meus leitores um pouco das informações que consegui aleatoriamente a respeito desta guerra enquanto estudava a genealogia dos habitantes do Piauí nos arquivos brasileiros e portugueses.


Em 11/10/1712 uma cristã nova do Rio de Janeiro de nome Brites da Costa, de 24 anos de idade, foi presa pela inquisição e condenada a cumprir abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, penas e penitências espirituais em Lisboa. Seu marido era um jovem Cavaleiro da Ordem de Cristo, o cristão-velho José de Abreu Bacelar. Minhas pesquisas apontam no sentido de que este José de Abreu Bacelar veio cumprir degredo no Piauí em 1717.  Em 02/04/1734 é registrado o batismo de Catarina filha de Ana, escrava de José Pereira de Abreu Bacelar na freguesia de Nossa Senhora da Vitória (Oeiras). 


Em 1735, Luis Carlos Pereira de Abreu Bacelar, irmão de José, vem para o Brasil como Capitão-Mor de Parnaíba, ano em que recebe sesmaria nas Ihas Canárias (foz do Parnaíba). Antes disto morava na Casa da Bréia (http://www.casadabreia.com/ e http://www.youtube.com/watch?v=uvK2Jbbn2lU), berço dos Abreus Bacelares em Portugal e que constitui o análogo à Casa da Serra Negra no município de Aroazes-PI (http://www.fnt.org.br/artigos.php?id=632 e http://www.trivago.com.br/arcos-de-valdevez-51123/hotel/casa-da-breia-35104/fotos). Em 1738 tira carta de brasão de armas ea partir desta data, não mais recebe sesmarias reais, pois desnecessárias. Em 31/08/1746 na casa de retiro da fazenda Serra Negra, distrito da vila da Moucha, o capitão-mor, em companhia de sua esposa Arcângela Úrsula de Castelo Branco troca a fazenda das Titaras em Campo Maior pela Fazenda de São Nicolau de Baixo da freguesia de Nossa Senhora da Conceição (Valença). Este casal teve os seguintes filhos: 1º) Félix José Leite Pereira de Castelo Branco (nascido antes de 1749); 2º) Antônio José Leite Pereira de Castelo Branco (nascido antes de 1749); 3º) João Leite Pereira de Castelo Branco (*1749, +1814); 4º) Luís Carlos Pereira de Abreu Bacelar (*1754, +1811); 5º) Pedro Luís Pereira de Abreu Bacelar (*1760, +1802).


E o que é que este pessoal tem a ver com você, leitor cujas raízes estão no Piauí? Um destes cinco pode ser bisavô de algum de seus bisavós, com uma probabilidade mínima de 10%. Mas a parte mais interessante é que a genealogia deles é uma genealogia perdida. Sumiram os registros de nascimento, casamento e óbito deles e, relativamente às suas genealogias descendentes, em todas as correntes faltam elos.


Em 1758 os jesuítas fizeram uma inquisição contra cinco escravas de casa (índias, negras e mestiças. Mott, http://seer.bce.unb.br/index.php/textos/article/viewFile/6055/5013) na casa de José de Abreu Bacelar em Nossa Senhora do Livramento (Parnaguá). Dois anos após este fato José estava morto e, os jesuítas, expulsos do Reino de Portugal. Nesta pendenga não se sabe o que ocorreu com os registros de Nossa Senhora da Conceição dos Aroazes relativos ao período 1739-1809.
Em 1811 o coronel de milícias Luís Carlos Pereira de Abreu Bacelar, chefe das armas do Piauí e membro da junta trina provisória desta capitania recém-separada do Maranhão, seguindo os passos de Carlos Cezar Burlamaque, entra em rota de colisão com D. João VI. Desaparece misteriosamente no mesmo ano. No testamento riquíssimo (conforme palavras do próprio D. João VI), deixa herança isonômica entre os filhos naturais legitimados mestiços Claro Luís Pereira de Abreu Bacelar, Vasco José Pereira de Abreu Bacelar, Arcângela Pereira de Abreu Bacelar (filhos de Narcisa Pereira) e outros, com os dois legítimos e muito nobres (descendentes da casa real) filhos que teve com Luzia Perpétua Carneiro de Souto Maior Bacelar, sua viúva.


A viúva, já em vias de se casar com o então governador do Maranhão (de quem já esperava uma filha), bem como os poderosos irmãos dela, não aceitam este testamento. Dom João VI o anula, de fato, em 1813. Mas o conflito permanece. Em 1815, após tentativas frustradas, a viúva consegue se casar com D. José Tomás Eça e Meneses na Lacedemônia (Grécia). Em 17/09/1817 D. João VI estabelece provisão leonina sobre as mais de 40 fazendas de gado de Luís Carlos da Serra Negra, deixando apenas 10% das rendas das fazendas no Piauí para manutenção das mesmas e pagamento do administrador delas, o Ouvidor Geral. Houve muita revolta das autoridades piauienses, mormente dos parentes de Luís Carlos. Alguns foram mortos, como é o caso de seu irmão João Leite e o seu filho Antônio Luís Pereira de Abreu Bacelar. Outros tiveram que fugir para a região de Pilão Arcado onde vivia Félix José, como é o caso de todos os filhos do coronel João Leite, governador do Piauí que, após ser preso em 1814, faleceu nas masmorras de São Luís do Maranhão. Vejamos um trecho da acima citada provisão real:

“Que havendo-me reprezentado Dom Joze Thomáz de Menezés, por cabeça de sua Mulher Dona Luzia Perpetua Carneiro de Souto Maior, e como tutor dos seus entiados menores Dona Archangela, e Luiz, os gravíssimos prejuízos que lhes tem causado os officiais da Provedoria do Defuntos, e Auzentes da Capitania do Piauhy, combinados com os Filhos bastardos do primeiro Marido de sua Mulher o Coronel Luiz Carlos Pereira de Abreu Bacelar, os quaes com pretexto de se achar aquella auzente em Lisboa, quando este falesceu se meterão de posse de todos os bens, que delle ficarão naquella Capitania, sem embargo de haver ali Procuradores por ella legitimamente nomeados, e com reconhecida malicia dispuzeram arbitrariamente dos trastes de Ouro, prata, moveis, fazendo-se senhor delles por interpostas pessoas que [...]ladamente [...] [...], para lhes entregarem, e inventando atificiozos meios de tirarem a vultozos salários, já com a venda dos mesmos bens de[...]rais, que a porião em effeito se lhes não fosse a tempo obztada, já ad’metindo justificaçoens graciozas, para pagamento de dividas, sem a necessária audiência dele suplicante, de sua Mulher, e do Curador dos menores, alem de [...] o costeio, e manutenção das fazendas, cura, tratamento, educação, vestuário, e sustento da numeroza escravatura, de maneira que com semilhantes dilapidaçõens e com tão notável desleixo, e abandono, em breve tempo será de todo arruinado e aniquilado hum requicimo Patrimonio".

Notem que o uso político hipócrita da educação e da saúde é coisa muito antiga no Brasil e, nossa maior independência, só ocorrerá quando nos livrarmos do uso abusivo desta prática. Vejamos parte da anulação do desaparecido testamento de Luís Carlos:

O Escrivão da Provedoria da fazenda dos Defuntos e Ausentes, Estevão Vicente Costa, declara o teor da Sentença que julgou nulo o Testamento do falecido Coronel Luís Carlos Pereira de Abreu Bacelar.
...
“Estevão Vicente Costa, escrivão da Provedoria da Fazenda dos Defuntos e Auzentes desta Comarca, etc.
Certifico que revendo o testamento com que faleceu o Coronel Luís Carlos Pereira de Abreu Bacelar nelle a folhas dezoito the verço se acha a sentença do theor forma e maneira seguinte = Hei por nullo e senenhum vigor o prezente testamento pelas imensidades de leis que atropela o Testador já testando contra razão natural, e direitos do matrimonio e de seos filhos legítimos, xamados a herança com iligitimos, e havidos de desvairadas mancebas sem nobreza alguma, gozando o mesmo Testador della, já despondo da terça ou de mais della contra o genoino expirito da geles digo expirito da legislação moderna de quase toda a Europa civilizada, e da nossa legislação pátria bem terminantemente declarada nas Providentíssimas Leis de vinte cinco de junho de mil setecentos e cecenta e seis, de nove de setembro de mil setecentos e secenta e nove, e na de vinte de maio de mil setecentos e noventa e seis. Pelo que ficando sem vigor este nullo testamento, fique o direito salvo aos legítimos herdeiros auzentes de requerer o que lhes convier, entretanto ao Thesoureiro cumpre por obrigação de seo offício continuar na arrecadação de todos os bens de quaisquer das expecias, e requerer sobre todas as nulidades extravios, pena de responsabilidade por qualquer leve omissão, e que pague a herança as custas. Oeiras, vinte e nove de Outubro de mil oitocentos e onze = Luiz Joze de Oliveira”. [Estevão Vicente Costa, em 24/07/1818, nos autos de tutela e curatela relativos ao falecimento de Dom Joze Thomaz Eça de Menezes].

D. José Tomás faleceu em 1819 e a briga entre a "biviúva" e os parentes que restaram de Luís Carlos não acabou. Em 1823 Manoel de Sousa Martins, o qual havia sido um antigo aliado de Luís Carlos da Serra Negra, envia para os filhos de João Leite em Pilão Arcado, em carta endereçada a Liberato José, então capitão-mor daquela região sertaneja, pedido de socorro. Este envia "gratuitamente" várias centenas de soldados. Outro filho de João Leite, Antônio José Leite Pereira de Castelo Branco, organiza o sistema de operações encobertas e, Claro Luís Pereira de Abreu Bacelar, coordena todas as ações de combate. Este oficial recebeu de D. Pedro I uma das primeiras medalhas da Ordem do Cruzeiro, por ter sido o único oficial a participar de todas as fases da guerra. Após comandar o cerco a Caxias a partir da Vila Velha do Poti (Dez anos depois o seu irmão Clementino Luis Pereira Brasil fundaria a cidade de Teresina com o nome de Vila Nova do Poti) sofreu tentativa de assassinato por parte das tropas ocupantes do Ceará (tropa de ocupação é coisa séria!). Foi assassinado após o levante da Confederação do Equador e foi enterrado com sua medalha, à qual os avaliadores atribuiram o  "justo valor" de 25 mil réis (cinco cavalos). Seu irmão, o capitão Vasco José, estava sob as ordens de Fidié (este, vaidosamente não o cita nominalmente, mas a ele se refere em seu livro) e foi o protagonista do famoso "roubo da bagagem do Fidié". Não roubou coisa nenhuma, apenas aproveitou o momento da Batalha do Jenipapo para passar para o lado do irmão mais velho, Claro Luís. Levou o que era dele, é claro, inclusive alguns de seus comandados, pois era capitão das milícias fundadas por seu pai, agora sob as ordens de Fidié. Este era um herói nacional em Portugal e, inclusive, foi convidado por D. Pedro I para ser um dos comandantes militares do Brasil (infelizmente não aceitou). Depois da guerra, Vasco José enviou ofício pedindo o restante de sua bagagem.


A história sempre nos prova que não existe guerra, inclusive entre nações, sem "guerra" entre pessoas pelo domínio dos bens materiais. Esta é a explicação do motivo pelo qual o Piauí realmente foi palco de uma sangrenta guerra, com cerco a Caxias por mais de três meses (a Faluja brasileira, várias vezes sitiada). Os parentes de Luís Carlos queriam reaver o que era deles. Eles queriam "ir prá cima" de São Luís, ou pelo menos até o sítio Barbados, sede do poder dos irmãos da viúva. No entanto, a viúva, que estava bem próxima do poder central, negociou. Por mar alguns profissionais de guerra marítima ingleses, cujo capitão declarou não entender a independência do Brasil, foram para São Luís e, por terra, vieram os cearenses. No final do período joanino a viúva detinha o controle do império, pois possuia forte influência sobre Tomás Antônio de Vila Nova Portugal, o mais poderoso ministro brasileiro de todos os tempos e que morreu "lascado", enquanto a viúva, não. No Itamaraty há várias cartas dela para D. João VI e Vila Nova Portugal descrevendo compra e venda de quadros, cobranças e prestações de contas relativas a construções de prédios a mando de D. João VI, alguns na Ponta do Cajú, no Rio de Janeiro. Algumas destas cartas, escritas na própria casa do poderoso ministro.


Após o assassinato de Claro Luís, que morreu como chefe militar máximo do Piauí, o então presidente da província passou a ser o procurador da viúva, a qual foi morar em Portugal num belíssimo palácio na Rua São José, 204 em Lisboa. 
 Rua São José 204, Portugal

E, "todo ano", vendia uma fazenda. Este procurador governou até o final da Balaiada, a qual foi outra guerra desencadeada pelos Castelo Branco para tirá-lo do poder. Mas ele morreu bem velhinho. Quanto à viúva, a última notícia que tive dela foi em 1847 na Associação Consoladora dos Aflitos em Lisboa, como associada beneficente dos pobres aflitos. Ela não teve bisnetos. Luís Carlos da Serra Negra teve muitos descendentes e, um deles, pode ser você.
 
Luiz Carlos Pereira de Abreu Bacelar Castelo Branco, filho de Luiz Carlos e Luzia Perpétua.  http://www.geneall.net/img/pessoas/pes_12602.jpg
Quanto a Claro Luís, o qual é o nosso grande herói nacional piauiense, a última notícia que tive dele foi a descrita abaixo:

"No arquivo público estadual da Bahia em Salvador, na carta precatória de classificação 32/1139/1, consta que Claro Luiz Pereira de Abreu Bacelar faleceu em Campo Maior e teve testamento aprovado em nome dos filhos Luiz, Belizário, Henriqueta, Claro e Delfino. Luiz e Belizário haviam sido enviados para estudar em Salvador aos cuidados de Francisco Xavier Leão. Quando surgiram as primeiras escolas públicas no Piauí o Coronel Inácio de Araújo Costa, tutor dos menores, envia em 11/05/1831 Joaquim José Teixeira para buscá-los, mas Xavier Leão, de quem Luís Carlos da Serra Negra foi sócio e fiador na arrematação dos dízimos de Marvão no período 1788-1790, não os entregou. No testamento do Coronel Claro Luiz este também diz que “o filho de Francisca Cryolla herdará igualmente com os filhos legítimos por não haver entre ele e a cryolla Francisca impedimento algum”. Eis o registro de nascimento":

“Ao primeiro de janeiro de 1828 nesta Matriz de Santo Antonio de Campo Maior baptizei solenemente e pus os santos oleos o inocente Claro filho natural do falecido Tenente Coronel Claro Luiz Pereira de Abreu Bacelar e de Francisca da França, forão padrinhos o Capitão Antonio Lopes de Castello Branco e Silva e Dona Liduina Roza de São Joze; do que para constar fis este asento e o asignei = Fr Joaquim Jeronimo Castro Vigário Encomendado”. (MIRANDA, Lossian B. B, [1]).


O grande herói da terra da miscigenação é, também, herói da diáspora africana. Tal como nos é contada nos meios menos esclarecidos, a história política colonial piauiense não faz muito sentido, fica parecendo uma versão mal feita da morte da jovem Fernanda Lages. Inserindo Luís Carlos da Serra Negra na história do Piauí tudo se encaixa, tudo fica transparente, obedecendo ao princípio de causa e efeito.

REFERÊNCIAS

1. BRANDAO, Carlos Augusto P; MIRANDA, Lossian B. B. Demonização e Mitificação de Luís Carlos da Serra Negra. Pré-publicação do XI Encontro Nacional de História Oral - Memória, democracia e justiça, UFRJ. Associação Brasileira de História Oral, 2011.
Lossian Barbosa Bacelar Miranda. lossian@oi.com.br